Cotidiano,  História

Milagre da multiplicação

O verão saturava o azul do céu de Candela. O calor era intenso num ar estático aprisionado entre as montanhas. Mas as crianças hiperativas estavam proibidas de por a transbordar de água potável suas piscinas portáteis de cinco mil litros. Também não estavam autorizadas as lavagens de veículos e calçadas. Tampouco eram incentivados banhos demorados e escaldantes. A cidade vivia um período de racionamento. Era medida emergencial da Prefeitura. Começou no dia seguinte à tarde em que a água parou de pingar, sem aviso prévio, das torneiras de mais de dois terços das casas.

Foi do nada. Pegou muitos de surpresa, mas não era para menos. O ano anterior havia sido de eleições para deputados, senadores, governadores e presidente. O prefeito parecia ter se esquecido dos deveres com o município antes mesmo do fim de maio. Estava focado em manter os cargos dos padrinhos políticos. Trabalhou muito, mas não para Candela. Resultado: ninguém se preocupou com a dengue ou com a reposição dos remédios gratuitos para diabetes. No máximo, esses “pequenos” desleixos levaram a óbito dois ou três infelizes. Mas quando faltou a água o desespero foi grande porque também faltou na suíte da primeira dama. Imediatamente o diretor da empresa municipal responsável pelo abastecimento foi chamado. Entrou pálido no gabinete do prefeito com a notícia de que acabara de descobrir que os reservatórios estavam à míngua.

Planos emergenciais, campanhas e até simpatias entraram na rotina candelense. Padre Getúlio promoveu uma novena especial para clamar a Deus por chuva. Porém, nada era tão azucrinante quanto o carro de som. Rodava o dia inteiro com uma gravação terrível sobre a importância do uso consciente da água. O texto colocava toda a culpa unicamente no consumo desmedido da população. Vinha precedido do som de uma sirene e tinha como trilha uma música dessas de fim do mundo.  A frase “se você não economizar, ela vai acabar” chegava aos ouvidos de todos os bairros e distritos. Só não chegava à Serra dos Coquinhos. Afinal, lá nunca teve muita água mesmo.

A região ficava num morro íngreme, um dos lugares mais esquecidos da cidade, habitada por seis ou sete famílias. Não mais que 35 pessoas. Como não havia eleitorado, o poder público não comparecia. As casas, pequenos sítios, eram abastecidas por um tímido filete de água que nascia num manancial no alto da serra. Era tudo o que eles possuíam para beber, criar animais e plantar pequenas roças. Viviam do conhecimento acumulado de todos para preservar o pouco que tinham.

Um dos moradores uma vez ouviu dizer que era importante manter a vegetação natural da nascente. Somado a isso, o folclore fez consolidar uma história de que Nossa Senhora Aparecida havia se apresentado para um homem que bebia água no local e pedido a ele a preservação. Assim, o lugar, mais que importante, se tornou sagrado. Contava até com imagem da santa. E o melhor: ficou intacto.

Outra preocupação veio de um sitiante, professor, que ensinou e ajudou os vizinhos na construção correta de fossas. Também não era permitido tirar a cobertura vegetal do caminho do mísero riacho. E cada um só poderia usar a quantidade de água de que precisasse, sempre pensando no morador abaixo. A filha mais nova de uma das famílias não sabia o que era banho quente e demorado, mesmo depois de, com muito custo, ter chegado energia elétrica na região. No final das contas, a água até sobrava e a rã que cuidava da purificação do reservatório da última casa a receber o recurso tinha trabalho o ano inteiro.

Para o rio de Candela a água que descia da Serra dos Coquinhos não era tanta para alimentar sua força, mas era limpa. Quase dava para beber.  O “eu pago meus impostos em dia”, usado por moradores do centro para justificar consumos e direitos não era argumento conhecido lá no alto do morro, apesar de todos aqueles sitiantes pagarem seus impostos religiosamente em dia. Por lá, a lei era clara e não precisava ser lavrada: dividir para multiplicar. Como todos repartiam o pouco que havia com sabedoria e respeito às demandas de cada um, todos tinham mais que o suficiente. Uma nobre justiça imperava entre eles. E se a mensagem de Candela não chegava à Serra dos Coquinhos, a da Serra dos Coquinhos precisava chegar à Candela, urgente.

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