O velho pião
Ele estava lá. Mas o amigo não. Sentado sobre a mureta de pedra da ponte antiga que une os dois lados do rio em sua entrada em Candela, estava Antônio. Em apenas oito anos de vida ele tinha acabado de entender o significado da palavra saudade.
Às dez da noite do dia anterior, ou não muito mais que isso, o amigo, Seu Giovani, havia sido levado para o hospital. Com 82 anos, comia desregradamente, esquecia por vontade própria de tomar os medicamentos e pensava que ainda podia trabalhar como quando tinha 30. O coração discordou. Morreu no início da madrugada e foi enterrado às três da tarde no Cemitério Municipal de Candela.
Era homem ágil, carpinteiro caprichoso e barateiro, coisa rara nos tempos de hoje. E tinha muito apreço pelos netos que conquistou no caminho da vida. Alguns já de barbas feitas e com filhos que também se apegavam ao bisavô emprestado.
O motivo era simples: nas horas de folga, Seu Giovani produzia brinquedos de madeira para as crianças e as ensinava a fazer carrinhos com rodas de rolimã. E também gostava de “puxar as orelhas” das bagunceiras. Em outros tempos, os puxões eram de verdade. Culpa do sangue italiano.
De qualquer forma, faltava quem não gostasse dele. E mais. Em sua oficina, anexa à casa, enquanto os meninos acompanhavam seu trabalho, da cozinha saiam biscoitos de nata, broas ou bolinhos de chuva preparados por dona Elisa, a esposa.
Com a morte dela, cerca de dois anos antes, não houve quem cuidasse de Seu Giovani. Os filhos moravam em capitais às custas de seus próprios sonhos. E ele também não se preocupou com isso. Sentia-se jovem. Aliás, o espírito era.
Mas não foi a jovialidade, os inúmeros carrinhos, muitos quebrados de tanto brincar, ou os biscoitos de nata de Dona Elisa que fizeram Antônio se aproximar do carpinteiro. Era afeto mesmo.
Toda criança nasce e recebe dos pais a obrigação de gostar e de tomar a benção de parentes que ela não escolheu. Com o menino foi diferente. Era filho único, os familiares estavam longe e os quatro avós eram falecidos. Dessa forma, teve o direito sublime de escolher o seu casal de avós. Um amor verdadeiro. Sentiu muita falta quando ela morreu, mas ainda tinha ele. E Antônio era uma das forças do velho.
Ainda naquela semana, Seu Giovani havia falado em morte com ele, enquanto consertava um dos carrinhos. Mas comentava de forma banal. Lembrou-se de Dona Elisa e do quanto ele sentia saudade dela. E que torcia para que o menino também encontrasse uma companheira assim. Daí, a conversa partiu para perguntas sobre se o menino já tinha namorada. O pequeno ficou bravo e vermelho de vergonha e o assunto parou. Seu Giovani terminou o conserto do brinquedo, pediu para que ele esperasse um pouco e entrou em casa. Retornou com um pião na mão. Disse que era a única lembrança que tinha do pai, também carpinteiro. E contou que o pai dele esteve na guerra e que fazia piões de madeira para brincar e distrair os colegas em momentos de sossego no campo de batalha. Terminados os conflitos, pai e filho vieram para o Brasil. Seu Giovani revelou que mesmo seguindo a profissão do pai nunca conseguira reproduzir piões. Era seu ponto fraco e, agora, um segredo entre os dois.
Antes de o menino ir embora, o carpinteiro entregou a ele o pião. Falou que não queria mais ficar guardando coisas, estava se desprendendo de tudo. O menino não gostou do que ouviu, mas gostou do brinquedo. Seria o único entre todos os netos que teria um presente tão valioso, mesmo sem saber jogar.
Agora, sentado na mureta, o pião no bolso da calça do terno miúdo, aquele lado da cidade vazio, o coração cheio querendo chorar. Não conseguia. Descobriu, tão cedo, e por isso, injustamente, o peso da expressão “nunca mais”. A alma não tinha planejado outro lugar para estar nos fins de tarde entre a saída da escola e a chegada em casa. Pelo menos agora o pai já não precisaria buscar o filho debaixo de chuva na casa do vizinho idoso depois das dez. O menino estava ali, naquele canto da cidade, vendo a lentidão do rio passar sob seus pés.
Então, tirou o pião do bolso, girou o corpinho para dentro da ponte, desceu da mureta, enrolou a corda com todo o carinho e dedicação que um menino de oito anos poderia empregar com sua coordenação motora e, sem nenhum cálculo, atirou o brinquedo ao piso, fazendo-o rodar pela primeira vez por suas mãos. Era lindo o movimento. Ele sorriu. O pião tinha mesmo a capacidade de fazer as pessoas felizes em momentos difíceis. Vai ver era isso que dava forças a ele nesse tempo sem a dona Elisa, pensou Antônio como quem estivesse descobrindo um instrumento mágico. E, por algum motivo, Seu Giovani queria que fosse passado para ele. Era um belo tesouro. Acreditou que o avô amigo estaria ali de alguma forma e que seria para sempre, enquanto o pião pudesse girar. De sua maneira, sentiu-se especial e querido. Mas, apesar dos pensamentos, sabia que fisicamente nunca mais teria Seu Giovani por perto. A mágica era só um vago pensamento positivo.
Recolheu respeitosamente o brinquedo do chão e o envolveu entre as pequenas mãos, que tremiam um pouco. A madeira do pião começava a ficar úmida. Eram lágrimas que vinham dos olhos do menino que agora rumava de volta para casa.
Naquela noite, os que viram o pequeno Antônio passar chorando abraçado a um pião de madeira, contam que não conseguiram esboçar reação diante de tamanha expressão de tristeza. Aquietaram-se e permitiram que ele passasse. Um silêncio terrível se fez pelo caminho, quebrado apenas pelos gemidos e os leves soluços do choro solitário. Algumas mulheres sentiram pena, mas entendiam que nenhum abraço seria capaz de amortizar a dor soberana da saudade. Era o tempo que faria esse trabalho, seguindo o compasso de um pião.