Cotidiano

A três

Há quem diga que três é o número da confirmação. Em Candela, na pracinha do Bairro dos Operários, três simboliza a fofoca. É que bem em frente ao local, quis o destino que três casas de paredes-meias fossem habitadas cada qual por uma senhora solteirona. As “Três Donzelas”, como eram chamadas pelos vizinhos maldosos, eram sentinelas de olhos famintos por notícias frescas. Cada uma em sua janela, tendo os cotovelos apoiados em almofadas com capas de crochê e um par de olhos a vigiar quem ousasse amar diante de suas moradas.

Era só um casal de pombinhos pousar no perímetro da praça para despejar seus desejos proibidos, que uma das janelas, senão as duas, ou mesmo as três, se abriam em frestas para a espionagem ou se escancaravam em camarotes para incomodar a privacidade conquistada à meia luz debaixo dos postes gastos.

O serviço era tão perfeito que pai bravo de filha namoradeira imediatamente recebia um telefonema delator assim que a pobre chegasse à praça. Houve quem não conseguisse dar um único beijinho. O chefe da família chegou junto. Nem mesmo a polícia local tinha tanta perícia e precisão.

O pior é que elas nem trabalhavam por encomenda. Era por esporte. O pagamento era ter os pais das moças, homens quarentões ou cinquentões, em suas janelas após os flagrantes, pedindo-lhes desculpas pela inconveniência de terem que vigiar suas filhas e agradecendo-lhes por zelarem pela moral e os bons costumes.

Fabiana, a jovem de 16 anos pega no ato pelo irmão mais velho, ao escapar da surra da qual o namorado não pode fugir, teve ainda tempo de passar pelas janelas das donzelas e gritar que elas não passavam de virgens sabotadoras. “Vocês condenam quem ama porque ninguém quis vocês” foram as últimas palavras da moça antes de continuar a fugir do irmão. Ao rapaz marcado pelo beijo e pelo soco consanguíneos só sobrou recolher seus restos de amor adolescente e enfrentar os olhares piedosos dos moradores daquela região do Bairro dos Operários que correram para seus portões ao ouvirem os primeiros gritos da confusão.

Enquanto isso, as três sentinelas permaneciam em suas respectivas janelas, resmungando a cólera contra o dedo que lhes apontou a virgindade. Após um debate acalorado, o assunto se extinguiu. A rua também já estava vazia. Elas se despediram. Fecharam suas janelas. Celestina fechou a janela azul clara. Durvalina, a amarela. E Amelina, a rosa, não sem antes dar a sua última costumeira espiadela pela fresta. Ao contrário da invisibilidade de que pensava dotar, poderia ser facilmente percebida pelo reflexo que a luz do poste da frente fazia nas lentes de seus óculos.

Por fim, todas se fecharam. E ao encerrar suas imagens públicas, abriram-se para suas verdades íntimas. A fala de Fabiana roía o peito de cada uma. Resmungava no estômago como a fome. Na verdade, o que as unia não era a sina pelos assuntos alheios, era o desejo que toda mulher tem de ser amada. Até mesmo elas que já atravessavam os três quartos da vida e sentiam o cansaço da idade avançada.

Celestina, na casa em penumbra, riscou um palito de fósforo na caixa e transferiu o fogo para a vela em frente ao oratório. Não foi clara nas orações tímidas, mas entre todos os santos presentes, Antônio captou que a conversa era com ele. Durvalina sentou no sofá da sala, ligou a TV pelo controle remoto e se deixou levar para os amores da novela. E Amelina, coitada, acendeu quase todas as luzes da casa. Tinha que adiantar o cozido do almoço do dia seguinte e faxinar alguns cômodos antes de dormir. Não que isso fosse urgente, mas ela precisava se varrer dos pensamentos bobos varrendo a sujeira depositada no chão sete horas após a última limpeza.

As três mulheres, nas três casas, cada casa de uma cor, cada mulher de uma resolução. As três casas de longe eram somente uma. As três mulheres bem de perto eram uma só. E quando juntas em prosa e vigília, se esqueciam dos amores que nunca lhes sorriram para condenar os que sorriam para outros em frente às suas janelas.

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